Em 1990, Moçambique vivia os estertores de uma longa e devastadora guerra civil. Com o fim premente dos combates, buscava caminhos para fortalecer seu sentido de Nação. Uma Assembleia Nacional Constituinte rediscutia a Carta Maior do País. O governo desenvolvia um ambicioso programa de educação, com foco na universalização do ensino de Português, no ensino técnico e no treinamento dos talentos moçambicanos em universidades no exterior. Um dos desafios, “do Rovuna ao Maputo” (versão moçambicana da nossa “do Oiapoque ao Chuí”), era unificar através do idioma português uma nação imersa em mais de 50 dialetos, de 16 troncos linguísticos tão distintos quanto o latino é do anglo-saxão, e ambos do arábico. Nesse cenário, tive a oportunidade de vivenciar uma das mais singulares experiências profissionais da minha vida: ajudar a desenvolver um método de educação ambiental, dentro de um projeto de agências da ONU para o Instituto do Planeamento Físico. Detalhe importante: tratávamos com um grupo não lusófono e sem tradição escrita: o povo de Inhaca, ilha ao sul da baía de Maputo.
Havia alguns meses, um grupo de consultores da FAO tinha introduzido no trabalho em Inhaca um método do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda: a “pesquisa participante”, que tem por ferramenta a chamada “restituição sistemática”. Consiste na realização de reuniões com a comunidade, onde eles se tornam os narradores da sua própria história. Conduzidos pelo nosso grupo, a comunidade – com grande reverência aos idosos – descrevia-nos os problemas ambientais da ilha. Falavam-nos da sobrepesca dos peixes (t’xlampfe no dialeto inhaca, do tronco shangana), caranguejos (khoruane ou nse-nsé, dependendo da espécie) e dos preciosos pepinos-do-mar (para eles, magadjôjo), tão apreciados no mercado chinês. Criticavam ainda o corte clandestino de madeira e o baixo saneamento. Voltávamos ao escritório, sistematizávamos os dados e retornávamos à comunidade para restituir e validar com eles as informações organizadas. Na segunda rodada, os moradores descreviam como a ilha de Inhaca costumava ser antes dos problemas ambientais. De novo, sistematizávamos e restituíamos. Terceira etapa, e eles enumeravam razões pelas quais os problemas se instauraram. Nova restituição sistemática. Por fim, o plano de ação, que fazia com que todos se apropriassem dos resultados e da necessária implementação à frente. Nossas reuniões corriam à sombra de um baobá centenário, sob os auspícios do céu e da brisa de Inhaca…
Entretanto, não havíamos considerado um aspecto crucial: como restituir informações sistematizadas a um grupo que não fala português, só conhece a tradição oral, e cujos códigos e símbolos estão totalmente apartados da cultura ocidental? Trabalhos desse tipo consolidam-se em relatórios, cartilhas e que tais. Mas os inhaca não liam nem escreviam! Qual método promoveria então a fixação dos conceitos e das ações necessárias, evitando a natural distorção que decorre da passagem da informação de boca em boca?
Recordando minha infância, lembrei-me das tiras em quadrinhos da “Turma da Mônica”, de Maurício de Souza, especialmente daquelas que, de forma genial, “narravam” uma estória sem uma palavra sequer, apenas através de uma sequência de desenhos. Perfeitamente compreensíveis para crianças no início da cognição. Parecia uma ótima solução para comunicar a quem não lê ou escreve… Primeira dificuldade: quais símbolos seriam compreendidos? Foi necessário conduzir um estudo semiológico expedito para entender que polegares para cima e para baixo (positivo e negativo), caveiras com raio (risco de morte por eletricidade), tarja vermelha na diagonal ou em “x” (proibido) não faziam, definitivamente, parte do universo cognitivo daquele grupo. Era necessário entender os detalhes da realidade e das práticas do dia-a-dia dos Inhaca, e representá-los com máxima precisão, em desenhos simples. Era também crucial entender os simbolismos relacionados às crenças, tradições, tabus e mitos locais, para evitar gafes culturais que poriam tudo a perder.
Segunda dificuldade, certamente a mais inusitada: esqueci-me que, para entender uma estória em quadrinhos, é necessário ter consciência da sequência temporal dos quadros, bem como conhecer um fundamento básico da leitura: na convenção ocidental, começa-se da esquerda para a direita, em linhas sucessivas de cima para baixo! Uma folha de papel repleta de desenhos em quadrinhos era vista pelos inhaca como um “múltiplo”, na linguagem das artes plásticas. Ou seja, um conjunto de desenhos e figuras, sem o necessário encadeamento temporal! Teríamos que criar um método para ensinar a adultos o rudimento direcional da leitura e, ao mesmo tempo, desenvolver nos novos “leitores” a percepção do encadeamento temporal e da existência de personagens, sem o que é impossível entender o quadro “múltiplo” como a narrativa de uma estória!
Trabalhávamos com um intérprete shangana, extremamente comunicativo. A menos do professor, das crianças matriculadas na escolinha e de mim mesmo, ele era o único que falava português. Como muitos moçambicanos à época, com alguma dificuldade. Através de palavras, gestos, mímicas e a custa de muitas gargalhadas, conseguíamos nos entender bem. Ao meu guia, eu mostrava os primeiros esboços desenhados, e ficava perplexo com o entendimento que ele fazia da mensagem, por vezes diametralmente oposto do que eu gostaria de comunicar. Com a ajuda dele – e observação das práticas locais – consegui produzir uma estória em quadrinhos para cada questão levantada pela comunidade. Com a atuação dele como contador das estórias no dialeto local, e com seu talento inato de dinamizador comunitário – apoiado por um flip-chart, onde cada quadrinho foi ampliado em uma lâmina – conseguimos construir o método que garantiu aos inhaca o rápido e perfeito entendimento da mecânica de leitura das estórias em quadrinhos sem texto, após a terceira página suportada pelo animador.
Com a ajuda dele, atrevi-me a escrever, como título para cada estória, uma frase em shangana propondo grafias que não existiam – como as que o leitor viu acima. O público dessas frases eram as crianças. Alfabetizadas em português, divertiam-se na descoberta das palavras em língua nativa, grafadas com os caracteres que aprendiam na escola. A alegria das crianças atraía a atenção dos mais velhos para a descoberta da leitura. Dessa forma, os peixes grandes (t’xampfe) foram fisgados pelos peixes pequenos (t’xlampfe weti tsongo).