Todos nós, crianças de 8 a 80 anos, já nos divertimos muito em frente à TV ou à tela de cinema acompanhando as peripécias da dupla clássica dos desenhos animados, Tom & Jerry. Todos da minha geração vibraram nas seções vespertinas no cinema drive-in, abrindo em gargalhadas todas as vezes que o gato era miseravelmente surrado ou – literalmente – entrava pelo cano nos seus embates com o camundongo. A fórmula é simples e certeira: o “mais fraco”, Jerry, vence o “mais forte”, Tom, pela sua astúcia. Todos simpatizam e se identificam com o “mais fraco”. Todos se esboroam em risadas sempre que o “mais forte” apanha: catarse das próprias opressões sofridas. Como uma caricatura, Tom representa tudo que é mais forte do que nós. O patrão, o chefe, o governo, as multinacionais, a polícia e a ditadura (no meu tempo de juventude), ou seja, tudo que oprime. Nada mais delicioso do que ver o opressor desabar, cair no abismo, ser achatado por uma bigorna, amoldar sua cara no formato da frigideira… Enquanto isso, como o rato, nós rimos.
Se olharmos de forma mais crítica os desenhos de Tom & Jerry, impossível não ficar na dúvida. Quem vitimiza? Quem é a vítima? O rato provoca sistematicamente um gato que tenta cumprir com sua obrigação de gato: pegar o rato! O rato tripudia, usa da condição de “mais fraco” quando lhe convém, urde as piores armadilhas para um gato “mais forte” – porém, preso às convenções e formalidades de um gato. O rato é a vítima? O gato é o opressor? Pelo desfecho comum a todos os filmetes, parece que não. De fato, Tom & Jerry invertem as posições de vítima e algoz. Mesmo assim, torcemos pelo camundongo…
As tensões entre alguns grupos da sociedade civil e grandes corporações estão cada vez mais contaminadas pela Síndrome de Tom & Jerry. De saída, é fundamental deixar claro: há movimentos sociais extremamente sérios e coerentes; e há causas justíssimas! Há pelo mundo casos reais de opressão social por parte de maus empresários e corporações. Há trabalho semelhante ao escravo, predação ambiental, corrupção, iniquidade. Mas o fato é que tendemos a ver todos os autodenominados “grupos de atingidos” ou “coletivos” e certos tipos de líderes comunitários e de ONGs “da resistência” como os “Jerry” da modernidade. A priori, simpatizamos com eles. Solidarizamo-nos com suas causas. Condoemo-nos de sua suposta condição de oprimidos.
À primeira vista, não notamos as ligações perigosas que por vezes transitam nos bastidores da articulação de alguns desses grupos. Não enxergamos políticos menores recrutando os “Jerry”, para extorquir empresas (a menos que, sob seu comando, cessem os movimentos…). Não vemos advogados oportunistas a comandar um exército de postulantes a indenizações milionárias, incompatíveis com os alegados danos. E – isso precisa ser dito – recusamo-nos a perceber o espírito de “levar vantagem”, de “eu quero é me dar bem”, de “farinha pouca, meu pirão primeiro”, que se esconde à sombra de alguns autoproclamados “oprimidos”, que se eximem de escrúpulos em face de tantos exemplos de malfeitos que invadem nossas casas pelos telejornais.
Essa parece ser a perversa sina que se reserva aos “Tom”: empreendedores e empresários, empresas (transnacionais, preferencialmente), BNDES, agências, autarquias e empresas governamentais de fomento econômico, entre outros: o rótulo de “encarnação do mal”. Mas, de fato, cumprindo seu dever de agentes econômicos, ou seja, buscar o lucro e gerar economia real e empregos. Parece que esquecemos que a distribuição de riqueza (crescer e distribuir o bolo, como caminho de inclusão social e equidade) decorre da economia real – indústrias, plantações, minas, portos, ferrovias, estradas, infraestrutura, obras públicas. E que, modernamente, só é possível fazê-las com respeito ao meio ambiente e às comunidades.
Reavaliando o caráter de Jerry do desenho animado, não há mais que se ter uma visão romântica e ingênua sobre alguns desses movimentos e coletivos sociais. De fato, a astúcia de seus articuladores, somada à atual “superficialidade de Twitter” (traduzida na leitura de, no máximo, 140 toques…), o mau-humor e, por vezes, o oportunismo dos recrutados, tudo isso potencializado pela velocidade da ação coordenada em rede – sob as bênçãos de uma natural simpatia por parte da imprensa e do Ministério Público pelo suposto oprimido –, vêm fazendo com que alguns empreendimentos sejam cruelmente atacados (levados até mesmo às proximidades da inviabilidade) por movimentos populares que estão longe de representar o melhor interesse coletivo e nacional. Contra alguns desses empreendimentos, estórias inacreditáveis são postadas na mídia alternativa e nas redes sociais, em volume e repetitividade astronômicos, influenciando a mídia mainstream e a visão de toda a sociedade. Dessa forma, inverdades, lendas urbanas e informações descabidas, repetidas interminavelmente, passam a ser confundidas com verdades indiscutíveis.
Inverte-se o ônus da prova. Aos acusados, cabe provar sua inocência. Mas não é incomum que todos os esforços para elucidar os fatos, mesmo com suporte de boa ciência, mostrem-se insuficientes, senão inúteis. O pré-julgamento dos “Tom” já está posto. Afinal, quem confia no gato que – por definição e preconceito – “é malandro, porque já nasceu com bigode”?