A transferência, havia quase três anos, de toda a família para a fronteira do Pará com o Amapá representava uma grande mudança no curso de nossas vidas. Para minha mulher, a interrupção de uma carreira promissora em marketing de consumo, e o mergulho em um Brasil real – que mais tarde a levaria aos caminhos da Responsabilidade Social Corporativa e da reputação como ativo fundamental para o marketing empresarial. Para os dois filhos, ambos em idade pré-escolar, a oportunidade de uma primeira infância maravilhosa, de uma liberdade quase indígena. Para mim, a ambicionada porta de entrada para a gestão ambiental dentro das empresas privadas, após 13 anos no governo, e logo em seguida à Rio-92. Se oportunidades assim se apresentam, sempre incentivo os jovens profissionais de meio ambiente, comunicação e responsabilidade social a se aventurarem em ambientes inusitados, diferentes dos seus “habitats naturais”. Sertão brasileiro, Amazônia, África, rincões isolados da América Latina… Viver por um tempo nesses locais, embebidos em outras realidades e culturas, fará deles profissionais mais perceptivos e abertos, com um olhar mais atento e generoso, tão útil para as suas carreiras.
Ocorria que, quase três anos após a nossa chegada à Amazônia, recebia em minha casa a carta que deflagraria a volta quase imediata da família ao Rio, a quem eu seguiria em seis meses. Dentro do envelope, havia um ofício formal de uma certa associação comercial ligada aos negócios da castanha-do-pará, elogiando uma iniciativa que eu havia encabeçado em nome da empresa. Informava ainda que – já que eu não era “local” e, portanto, desconhecia certas peculiaridades daquele negócio – a associação estaria disponível para me “orientar”, caso fosse intenção replicar a prática para outras comunidades. A experiência em questão: tínhamos apoiado a formação de uma cooperativa de castanheiros e pequenos produtores rurais. A iniciativa nasceu deles, castanheiros do rio Iratapuru. Da parte da empresa, através da compra da safra de um ano para a merenda escolar, havíamos garantido aos castanheiros a possibilidade de quitar suas dívidas, tornando-os independentes da chamada “política do batelão”. Financiando ainda um gerador e máquinas de prensagem de óleo – pagos suavemente, também com parte da safra de quatro anos, em equivalência de produto a valor de mercado em Belém -, facultávamos a eles a oportunidade de agregar valor à produção, e de obter contratos de longo prazo com empresas de cosméticos, ávidas pelo precioso óleo de castanha. Como resultado, a Cooperativa prosperava, firmava-se com contratos de longo prazo, e era agraciada com prêmios nacionais e internacionais.
A “política do batelão” consiste em prática antiga, através da qual os pequenos produtores de castanha, de seringa ou de produtos agrícolas da Amazônia permanecem atados a dívidas infindáveis com grandes comerciantes ou com associações comerciais – como a que me escrevia naquele momento. Os pequenos produtores vendem sua produção a preços descontados e, em contrapartida, compram víveres, combustíveis e outros produtos a altos preços desses comerciantes maiores. Como resultado, a dívida que nunca se paga cria um vínculo praticamente inamovível entre as partes – quase uma escravidão. Trata-se de uma variante da chamada “política de barracão”, que assolou por séculos a vida rural mais ao sul do Brasil. De “batelão” – e não de “barracão” -, em homenagem ao nome da embarcação que sobe os rios levando os víveres, e desce seus cursos drenando a produção.
Nossa intenção era a melhor possível. No entanto, eu desconhecia o quão arraigada era essa prática, e o quanto nossa ação subvertia as relações comerciais seculares em torno daquelas pessoas. A carta fora endereçada para minha residência, e não ao escritório. Nas despedidas, o signatário enviava suas “recomendações à esposa e aos dois filhos”. No fundo do envelope, um outro papel dobrado, apartado do ofício a mim encaminhado, chamava atenção. Ao desdobrá-lo, deparei-me com a fotocópia de uma suposta “tabela de pistolagem” do município vizinho, onde pude ver sublinhada à caneta azul a cotação para a realização do “serviço” com “gerentes da empresa”: míseros trinta Reais… O preço mais caro da tabela, duzentos e cinquenta Reais, era atribuído a “padres”. Dei-me conta que os suplícios no inferno devem se antever maiores para quem elimina sacerdotes servos de deus…
Na busca de proteção, procurei o encarregado pela segurança patrimonial da empresa, Tenente formado nos quadros do Batalhão de Selva, especialista na arte da camuflagem e de se fazer invisível na floresta aos olhos não treinados (e mesmo aos com muito treino). Soares ampliou muito meu entendimento sobre o que ocorria, esclarecendo-me duas coisas. Primeiro, que se tratava de um recado. Se quisessem, já me teriam matado, nas minhas costumeiras andanças pelos rios, florestas e comunidades do Jari. Em segundo lugar, que não havia como ele e seus homens me protegerem naquelas vastidões. O tiro certeiro viria à distância, de onde menos se esperasse. A única saída, então, seria entender e acatar o aviso, e não replicar em outras localidades a experiência exitosa do vale do rio Iratapuru. Apesar dos inúmeros pedidos que recebemos, foi assim que se deu. E, para minha família, a saída acabou sendo o aeroporto.
Nos anos em que convivi com os castanheiros do Iratapuru, eu via nas intenções e na determinação daqueles homens e mulheres a mola que move os sonhos, e os torna reais. Ouvia os planos deles de instalar no futuro uma planta de amônia, para introduzir criogenia na quebra das cascas. Aguardavam a eletricidade para isso, que viria de uma hidrelétrica a fio d’água – então em projeto, hoje instalada e operando. Havia um forte sentido de empreendedorismo naquelas pessoas simples, mas determinadas. Muitos anos se passaram, e voltei por acaso a ter notícias sobre aquele grupo. Desavenças internas e disputas de poder teriam culminado na queda das lideranças. Sonhos políticos fizeram com que um dos principais líderes à época, antes o grande artífice e agregador da Cooperativa, houvesse partido para tentar alçar voos maiores em Macapá. A malária e a leishmaniose (chamada por lá de “lepra branca”) estariam vitimando impiedosamente a comunidade. E a Cooperativa teria perdido seus principais contratos comerciais, por instabilidade na entrega e na produção. Fica a lição: intenções – por melhores que sejam – consolidam-se ou se destroem à luz (ou à sombra) da autodeterminação das pessoas.