Notícia de hoje, na primeira página do Caderno Economia de O Globo: “Shoppings já adotam solução do ministro para economizar eletricidade. Consultoria estima que setor tem 9 mil megawatts em geradores. Apresentada como uma das ações emergenciais para conter a crise energética pelo ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, a utilização de geradores pelo comércio já é uma prática recorrente dos shoppings do país. Segundo a Abrasce, associação que representa o setor, cerca de 90% dos shoppings usam o equipamento, especialmente nos horários de pico. A medida também visa à redução de custo.
– Usamos geradores desde o apagão de 2001. Inicialmente, como backup, mas aos poucos a prática foi sendo adotada para diminuir a sobrecarga e baratear o custo condominial, já que em algumas regiões do país a energia é muito cara no horário de pico – explica Glauco Humai, presidente da associação”. Por razões econômicas, de sobrevivência dos negócios, a dita ação emergencial provou já ser hábito continuado, há longos anos…
Na semana passada, chamou-me atenção a seguinte publicação, no mesmo jornal: “Estado ameaça cortar licença de grandes indústrias que não empregarem água de reuso. Anúncio foi feito em reunião com empresas que, juntas, captam até três metros cúbicos por segundo do Guandu. Para enfrentar a crise hídrica, o governo do estado vai exigir que indústrias de grande porte passem a empregar exclusivamente água de reúso da Cedae em sua produção. O anúncio foi feito nesta quinta-feira pelo Secretário Estadual do Ambiente, André Corrêa, durante reunião com representantes do Grupo Gerdau, da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA), de Furnas e da Fábrica Carioca de Catalisadores (FCC), que têm instalações no Canal de São Francisco, na foz do Guandu — do qual captam, juntas, até três metros cúbicos de água por segundo. A mesma exigência será feita à Refinaria Duque de Caxias (Reduc), em reunião nos próximos dias. A empresa, sozinha, absorve até dois metros cúbicos por segundo. No caso das empresas instaladas no Canal de São Francisco, o projeto prevê a implantação de uma adutora com 14 quilômetros de extensão até a Estação de Tratamento do Guandu, onde será captada a água da Cedae empregada em atividades industriais, como lavagem de tanques de decantação”.
Estive na reunião citada, como consultor de empresas do Distrito Industrial de Santa Cruz (DISC). A matéria traz alguns pequenos erros factuais: as quatro empresas citadas usam juntas um metro cúbico por segundo – e não três –, o que torna o volume de água de lavagem de filtros e clarificadores da estação de tratamento de águas do Guandu suficiente para abastecê-las, e ao futuro COMPERJ. Para a REDUC, o plano da Secretaria do Ambiente é destinar água de reuso da estação de tratamento de esgotos de Alegria, liberando a água hoje captada pela Refinaria no Sistema Saracuruna (de excelente qualidade) para a população de Distritos de Duque de Caxias que sofrem hoje com o desabastecimento. A prioridade é o atendimento ao consumo humano, antes de qualquer outro uso. Mas isso não compromete o raciocínio que leva ao ponto em que quero chegar.
Desde abril de 2013, a seca que atingiu São Paulo deu início às discussões de transposição do rio Paraíba do Sul para o Sistema Cantareira, com vistas a suprir de água a capital paulista. Várias reuniões foram conduzidas, com participação via videoconferência de representantes da Agencia Nacional de Águas (ANA) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e do Organismo Nacional do Sistema (ONS), em Brasília; representantes da Secretaria de Recursos Hídricos e da SABESP, em São Paulo; e representantes da Secretaria do Ambiente, do INEA e da CEDAE, no Rio de Janeiro. Nessas reuniões, tiveram também assentos representantes das quatro empresas citadas na matéria. Na pauta, a necessidade de testar reduções progressivas no volume de água transposta para o Sistema Guandu a partir do rio Paraíba do Sul, em Barra do Piraí, mensurando as consequências dessas reduções na capacidade de geração de eletricidade do sistema e no avanço da língua salina rio acima, pela ação das marés da baía de Sepetiba.
As empresas tiveram papel ativo e destacado nesse processo. Furnas e Ligth geraram informações diuturnas que permitiram avaliar no tempo o impacto das mudanças de vazão de transposição sobre o potencial de geração de eletricidade. A FCC, a Gerdau e a termelétrica de Furnas, que captam juntas em um ponto do Canal de São Francisco, mediram a influência dessas manobras na concentração de sal nesse ponto de captação. Para essas três empresas localizadas no DISC, a salinidade da água é restritiva; acima de determinada concentração, não há como utilizar a água em seus processos. Finalmente a CSA, cuja captação é a última do canal de São Francisco (abaixo dela, só a foz do canal na Baía de Sepetiba), já possuia um sistema de medição de salinidade (a partir da condutividade da água), que permitiu transmitir as oscilações de concentração de sal, online, em tempo real, ao INEA. Também para os processos da CSA, a salinidade excessiva é impeditiva.
Na mesa de discussão, à época, uma única divergência: as empresas sugeriam que o governo fizesse, em paralelo, uma forte campanha junto à população, para racionamento do uso de água e energia como medida preventiva, reduzindo assim a ponta da demanda. Historicamente, ciclos de seca se repetem de 10 em 10 anos aproximadamente. O atual ainda coincide com o terceiro ano de um ciclo de intensa atividade solar, agravando seus efeitos. Mas não se pode perder de vista que a população do Sudeste cresceu imensamente, amplificando a demanda. Além disso – lamentavelmente – ainda se percebia (e se percebe) a cultura do desperdício…
Divergência à parte, todo esse processo de trabalho transcorreu de forma profissional e parceira, com empresas produtivas e agentes públicos debruçados juntos sobre o problema, na busca de soluções técnicas que pudessem amenizar a grave crise que se avizinhava. E que chegou. Da parte das empresas, várias alternativas estiveram sobre a mesa: mudança física do ponto de captação; implantação de barragem de fundo para contenção da entrada da água salina (mais pesada); utilização da citada água de lavagem de filtros da CEDAE; plantas de dessalinização; ampliação das oportunidades de reuso interno, a partir do aprimoramento do tratamento dos efluentes de processo. Sobre esse último aspecto, aliás, nenhum outro setor da economia aplicou mais do que a indústria, nos últimos anos, em pesquisa e desenvolvimento para aumentar a eficiência no uso de água e a recirculação e reúso internos. Planta industrial mais recente do DISC, a CSA – por exemplo – tem recirculação de quase 97% da água utilizada em seus processos. Mesmo assim, novas oportunidades foram escrutinizadas.
Empresas são criaturas adaptáveis. Ou seja, têm a capacidade de se reinventar diante de adversidades, para garantir sua sobrevivência. Evidentemente, um dos aspectos fundamentais para qualquer empresa é o seu custo. Todas as alternativas citadas já vêm sendo estudadas, desde 2013, com forte visão em custos, medindo os impactos das mudanças sobre margens e resultado. Outro aspecto é que empresas vivem de realidade: se a redução de vazão do Sistema Guandu for tão drástica quanto pode vir a ser, o trecho inferior dos canais onde se encontram as captações de água dessas indústrias terá salinidade excessiva durante a maior parte do tempo. Se isso ocorrer, outra alternativa – mesmo com custo maior do que a captação direta – precisará ser implantada. E não há qualquer necessidade de ameaça de corte de outorga ou de licença para que isso aconteça. Trata-se de sobrevivência dos negócios.
Fechando o raciocínio, nesse ponto reside o que eu considero a principal distorção da matéria dO Globo. Talvez, as tintas pesadas do jornalismo tenham cultivado o velho hábito de valorizar o conflito na manchete e no lead. No entanto, a cassação de licenças nunca foi a mensagem central do discurso do Secretário André Correia na reunião de 29 de janeiro. O ponto principal foi o compartilhamento franco e transparente da real dimensão da crise hídrica no Estado, e a convocação das empresas do DISC – e, futuramente, de outras empresas – para uma frente de trabalho, onde soluções mais criativas possam dar respostas à nova realidade hídrica que precisará ser enfrentada. Nesse particular, nenhum conflito. Só convergências.