Estamos de volta, depois de duas semanas de recesso. Nosso assunto de hoje é a relação entre poeira e saúde no mundo das Leis.
Como é sabido, os padrões de qualidade do ar no País são regidos pela Resolução CONAMA 03/90. De alguns anos para cá, existe um movimento de segmentos da Sociedade Civil (e de alguns órgãos ambientais governamentais também) no sentido de rever essa Resolução, “ajustando-a” a diretrizes propostas pela Organização Mundial da Saúde a partir de 2006. Alguns Estados e Municípios – como lhes é facultado – já legislaram padrões mais restritos para alguns parâmetros. Um grande desafio são os materiais particulados, conhecidos vulgarmente por “poeira”. As poeiras mais “grossas”, que se precipitam causando sujidade, deixaram de ser objeto de preocupação da OMS. Ganharam maior destaque, no outro extremo, as poeiras mais “finas”, aquelas com dimensões inferiores a 2,5 milésimos de milímetros (Partículas Respiráveis, ou simplesmente PM 2,5) – invisíveis a olho nu, mas permanentemente em suspensão no ar, e capazes de atingir os níveis mais profundos dos alvéolos pulmonares. Assim, as mais recentes diretrizes da OMS apontam para a necessidade de uma progressiva redução dessas poeiras, bem como das chamadas Partículas Inaláveis, cuja dimensão varia entre os 2,5 e 10 milésimos de milímetros (PM 10).
Para as PM 10, a OMS recomenda um controle em etapas, para que se busque atingir uma concentração máxima de 50 microgramas por metro cúbico de ar (meta essa conhecida por AQG, do inglês “Air Quality Guideline”, ou Diretriz de Qualidade do Ar). Para tanto, propõe que os países signatários da ONU estabeleçam sucessivamente metas intermediárias (correspondentes a 150, 100 e 75 microgramas por metro cúbicos), a serem implantadas de acordo com suas possibilidades econômicas, tecnológicas e energéticas. Importante lembrar que a principal fonte dessas poeiras mais “finas” são os motores a diesel e a gasolina que equipam a crescente frota de veículos automotores. A nossa Resolução CONAMA 03/90 fixou o padrão brasileiro em 150 microgramas, ou seja, no primeiro degrau intermediário sugerido pela OMS.
No Estado do Rio de Janeiro, uma grande dúvida jurídica se estabeleceu. Como já dissemos nessa coluna, leis ambientais costumam ser influenciadas pela emoção, bem como pela pressão midiática. Quando foi promulgada a Constituição Estadual, incluiu-se no apagar das luzes o artigo 281, que previa que “nenhum padrão ambiental do Estado pode ser menos restritivo do que os padrões da OMS”. Contudo, o padrão fluminense para PM10 acompanha a Resolução CONAMA 03/90. Com base nisso, O Ministério Público Estadual moveu ação contra o Instituto Estadual do Ambiente – INEA e contra o Estado, na tentativa de fazer valer a diretriz da OMS como “padrão” a ser adotado no Rio de Janeiro.
Na semana passada, foi divulgada no site do TJRJ a sentença proferida nos autos dessa ação judicial. A sentença julgou IMPROCEDENTE a ação, e informou que a OMS não impõe limites em relação à concentração de poluentes na atmosfera, mas sim parâmetros que servem de norte ao legislador, para que sejam adotados padrões de qualidade do ar. Seguem os principais trechos da sentença:
“Com efeito, a pretensão não pode ser acolhida, inicialmente, porque o Ministério Público formulou pedido cuja abrangência escapa do calculável e engessa o Poder Público de estudar os casos concretos e o impacto ambiental de cada região, além de impor a observância, no território do Estado, de todo e qualquer documento emitido pela OMS, independentemente de ter sido incorporado ao nosso sistema jurídico, o que, conforme salientado pela Procuradoria do Estado, ‘…a tese da aplicação direta, toda vez que a OMS procedesse a uma alteração nos parâmetros, haveria uma automática modificação dos padrões internos fluminenses de qualidade do ar. Tal gatilho normativo implicaria, em última análise, numa submissão perene, ainda que parcial, da ordem interna a um organismo internacional, em indiscutível prejuízo à soberania nacional’.
Ressalte-se que o Ministério Público interpreta o artigo 281 da Constituição Estadual de uma forma que resultaria na inconstitucionalidade do referido dispositivo, uma vez que violaria os princípios da publicidade e da segurança jurídica, bem como os artigos 25, 49, inciso I e 84, incisos IV e VIII da Constituição Federal. Neste caso, a interpretação que melhor se pode extrair dos estudos da OMS é de que as conclusões científicas se traduzem em orientações elaboradas a partir de estudos empíricos (como ínsita ciência instrumental). Disto resulta que os parâmetros encontrados nas conclusões servem como diretrizes, ou seja, horizontes para uma ética ambiental a ser adotada universalmente. (…)
Assim, procedem os argumentos expostos pelos réus no sentido que, enquanto a OMS não estabelecer efetivamente padrões de qualidade ambiental, a norma trazida no artigo 281 não terá eficácia, ressaltando-se que o estudo disposto no ‘Air Quality Guidelines’ por enquanto, serve de recomendação para proteção do ser humano ou de receptores no ambiente de efeitos dos poluentes atmosféricos, sendo certo que cada país, dentro de das suas especificidades, deve estabelecer os padrões de qualidade do ar.
Portanto, o que se observa é que a OMS não impõe limites em relação à concentração de poluentes na atmosfera. Na verdade, verifica-se de todo conteúdo probatório que os parâmetros da OMS servem de norte ao legislador para que sejam adotados os critérios de controle de qualidade do ar”.
Vitória da razão, consubstanciada na tese sustentada de forma clara e precisa pelo parecer técnico jurídico, preparado pela Gerência de Qualidade do Ar do INEA, a quatro mãos com a Procuradoria Geral do Estado. Assunto encerrado? De forma alguma! Primeiro porque a decisão ainda não transitou em julgado, e sempre há a possibilidade de interposição de recursos. Segundo – e mais importante – porque permanece viva em alguns a ideia de radicalizar numa revisão da Resolução CONAMA 03/90. E depois dessa sentença, pode-se tornar uma “obcessão por vingança”… A discussão no CONAMA deve reiniciar em março, com a formação de nova câmara técnica. É lícito e esperável que ONGs mais extremadas, representantes da Sociedade Civil, defendam essa radicalização. O que preocupa é que representantes de Estados e Municípios subscrevam a adoção de AQGs como novos padrões de qualidade. Infelizmente, há interesses individuais de alguns representantes de Estados, que já tem seus Decretos publicados nessa linha, e que pretendem – por força da “lei do menor esforço” – abster-se de alterar o que já têm, propagando assim esse grave erro conceitual.
Aos meus leitores que trabalham como gestores ambientais de empresas ou como consultores, sugiro divulgarem essa discussão. Aos que trabalham em agências ambientais públicas, peço que reflitam: padrões de qualidade do ar não são padrões de emissão. Ou seja, a qualidade do ar é a resultante do conjunto das emissões de diversas fontes naturais e antrópicas, potencializadas por condições meteorológicas; não será possível, portanto, responsabilizar pela qualidade do ar, individualmente, essa ou aquela empresa que eventualmente contribua com emissões. Por outro lado, os gestores do órgão ambiental do governo serão imputáveis em ações judiciais movidas pelos Ministérios Públicos, caso não implantem políticas públicas necessárias para que os “novos padrões” sejam atingidos, ou caso as políticas implantadas não produzam efeito… Em outras palavras, caso os agentes públicos proponham apertos irrazoáveis e emocionais nos padrões da Resolução CONAMA 03/90, estariam eles armando as cordas e os laços de suas próprias forcas… No mundo real, a matriz de energia e dos transportes ainda é fóssil, e essa é a fonte principal dos poluentes do ar. Importante manter os pés no chão, e os dois olhos bem abertos. Pensem nisso.