A relação entre a temática ambiental e a evolução da legislação no Brasil vem sendo, desde a segunda metade da década de 1990, pautada pelo que há de pior para a propositura de uma regulação: fortes emoções, no lugar da razão. As Leis sucedem aos acidentes e às catástrofes. Considero um importante exemplo dessa tese a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”.
Essa peça jurídica foi produzida no segundo semestre de 1997, sob intensa atmosfera emocional. As autoridades ambientais e o Governo Federal precisavam dar respostas às pressões de ambientalistas, da imprensa e da oposição no Congresso. Em 10 de março de 1997, cerca de 2,8 mil litros de óleo bunker MF-180 haviam vazado de uma tubulação que ligava a Refinaria Duque de Caxias ao Terminal de Ilha d’Água, atingindo manguezais da Baía de Guanabara. Em 5 de agosto do mesmo ano, a CETESB anunciava a segunda multa, em quinze dias, por vazamentos sucessivos de óleo da Refinaria Presidente Bernardes, chegando ao rio Cubatão. Em 16 de agosto, novo incidente: dessa vez um vazamento de 2 mil litros de óleo combustível de um navio fundeado ao largo do porto do Rio de Janeiro atingia praias da ilha do Governador. Também era recente (e repercutia bastante) a discussão sobre Paulínia, onde uma fábrica de defensivos agrícolas havia sido vendida em 1995, e a auditoria ambiental realizada constatava a contaminação de água e solo por organoclorados. O desmatamento na Amazônia havia atingido seu pico histórico em 1995, com a supressão de quase 30 mil km2 de florestas nativas, segundo os dados do INPE. Embora as taxas fossem decrescentes e estivessem para alcançar uma redução de mais de 50% em 1997 (comparados aos números de 1995), os principais esforços do então Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal eram feitos no sentido multiplicar as Unidades de Conservação da Natureza e de combater o desmatamento ilegal, a captura clandestina da fauna silvestre e a biopirataria, mormente na Amazônia.
A criminalização da poluição e da destruição de flora e fauna já era instituto corrente na legislação de países europeus. O mau humor vigente apontava para a urgência de trazer para o ordenamento jurídico brasileiro a responsabilização penal de pessoas físicas e jurídicas por episódios de poluição e predação da natureza. O projeto de Lei foi apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso. Após brevíssimo período de discussões, emendas incorporadas, foi à sanção do Presidente da República um texto esdrúxulo, que veio a exigir a edição imediata da Medida Provisória 1.710, de 8 de setembro de 1998. Essa MP buscava uma formulação que evitasse que todos os responsáveis por empresas brasileiras anteriores à legislação ambiental fossem indiscriminadamente presos, de imediato, sem direito à fiança. Era essa a letra fria da Lei.
Essa Medida Provisória foi reeditada 10 vezes, antes de ser substituída pela MP 1.874-12 (29 de junho de 1999, cinco reedições), pela MP 1.949-18 (9 de dezembro de 1999, 14 reedições), a seguir pela MP 2.073-32 ( 27 de dezembro de 2000, reeditada seis vezes) e, finalmente, pela MP 2.163-39 (28 de junho de 2001, com duas últimas reedições). Todas essas mudanças ocorreram para acrescentar à Lei o Art. 79-A, que permite aos órgãos do SISNAMA celebrar um termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas, para que – dentro de um prazo determinado (entre 90 dias e 3 anos, prorrogáveis por igual período), e mediante a implementação de planos de ação e de investimentos predefinidos, com metas trimestrais – promovam as correções de suas atividades, para o atendimento das exigências impostas pelas autoridades ambientais. Como se trata de título executivo extrajudicial, seu descumprimento implica em multas e na permanência da obrigação, mas ficam suspensas as sanções administrativas referentes aos fatos que deram causa à celebração do termo, durante seu prazo de vigência.
Tal inclusão foi controversa. Gerou argumentos, da parte das alas ambientalistas mais radicais, de que se tratava de uma condescendência para com as empresas poluidoras ou irregulares. Contra tais argumentos, o racional por trás do artigo 79-A era dar às empresas organizadas – não às clandestinas – um prazo razoável que as possibilitasse ajustar suas operações, saindo das tipificações criminais genéricas propostas na Lei. No entanto, visões contrárias permaneceram. A reação dessas forças manifestou-se então pela inclusão na Lei de mais um artigo: dessa vez, o 69-A, introduzido pela Lei 11.289, de 2 de março de 2006. Por esse artigo, considera-se crime ambiental “elaborar ou apresentar, no licenciamento, concessão florestal ou qualquer outro procedimento administrativo, estudo, laudo ou relatório ambiental total ou parcialmente falso ou enganoso, inclusive por omissão”. Tal artigo tornou-se o terror de consultores ambientais, peritos e auditores ambientais, e dos profissionais de sustentabilidade das instituições financiadoras de projetos, públicas ou privadas. Que tênue linha divide uma alegada “omissão” de uma real (e admissível) desinformação por parte desses profissionais? O que significa “parcialmente falso”? Com a aceleração exponencial da inovação e do desenvolvimento tecnológico, como seria possível prever tudo? Como garantir que uma solução inédita de controle ambiental prevista em projeto (e protegida por patentes internacionais) teria exatamente a eficiência projetada? Qual profissional, de gestão, de consultoria ou de licenciamento, detém todas essas informações? Consultores com nome a zelar começaram a se perguntar se valia a pena assinar EIA/RIMAs e auditorias… Se os bons profissionais não os fizerem, quem os fará?
O objeto da Lei 11.289 era a gestão de florestas públicas e a instauração de suas instituições gestoras. Não obstante, as promotorias de justiça passaram a se valer, por abrangência, do artigo 69-A para oferecer denúncias contra consultores, auditores e financiadores de projetos, quando é constatada a necessidade de complementação de lacunas, ou de revisões e melhorias nos estudos e laudos, em qualquer tipologia de projeto em licenciamento. Junta-se a isso a interpretação literal dos artigos 66 e 67, que aplicam tipificações semelhantes, dessa vez aos servidores públicos dos órgãos licenciadores (que, por medo, não querem mais assinar pareceres para licenciamento) e do artigo 68 (“deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental”). Dada a generalidade do enunciado desse artigo, ele tem o poder de arrestar à condição de investigados (e mesmo indiciados), por alegado “dolo eventual”, todos os gestores ambientais e diretores estatutários de empresas potencialmente poluidoras.
Profissionais que se dedicaram por toda vida à causa ambiental defendem-se hoje em ações na Justiça, acusados de “crime”. O “castigo”, porém, sofrerá o País, com a completa paralisia – pelo temor – de todas as categorias de bons profissionais que operam na área ambiental no Brasil. A real tendência é de que se parem em breve o licenciamento ambiental, as consultorias para realização de EIA/RIMAs e auditorias ambientais, bem como a indispensável gestão ambiental dentro das empresas potencialmente impactantes ao meio ambiente. Tudo isso em função da absoluta insegurança jurídica que passou a assombrar a quem trabalha (e assume qualquer responsabilidade objetiva) nessa matéria.
O nó precisa ser desfeito. E o erro não está no Ministério Público, fiscal da Lei. O erro está na Lei em si – forjada sob a ótica das paixões, e sucessivamente mal remendada. Usemos, portanto, a razão: mudemos a Lei nas suas distorções.