O Projeto de Lei 3729 foi proposto em 2004, a partir da compilação e adaptação de elementos de vários outros projetos legislativos sobre a mesma temática. Procurava-se, então, enfrentar de forma ampla uma série de dúvidas e questionamentos práticos pertinentes ao licenciamento ambiental, pela visão de seus operadores públicos e privados.
De fato, pratica-se licenciamento ambiental no país desde a segunda metade da década de 1970 (em alguns Estados brasileiros), e nacionalmente a partir da formulação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981. A necessidade de reformular o licenciamento ambiental, conferindo a esse processo maior celeridade, previsibilidade e, ao mesmo tempo, segurança jurídica para todas as partes interessadas, tornou-se mais urgente após, principalmente, a promulgação da Constituição Federal de 1988, que conferiu à participação popular um papel mais destacado e complexo no processo, contando inclusive com a atuação interferente e intensa dos Ministérios Públicos.
Para os empreendedores, faltava segurança jurídica e determinação de prazos – sem a garantia do que não se tomam os riscos dos investimentos. Para os agentes públicos, a indefinição de partes importantes do rito (e suas condições de flexibilização) forjava o temor de assinar qualquer parecer favorável ao licenciamento de empreendimentos polêmicos, sob o risco de responsabilização administrativa, cível e criminal no plano pessoal. O mesmo, para consultores especializados na realização dos estudos prévios necessários.
Para todos nós – profissionais que trabalham ou já trabalharam em qualquer um desses três vértices do processo de licenciamento – como gestores ambientais do empreendedor, do órgão público licenciador ou das consultorias especializadas – parecia óbvia a necessidade de aprimorar o sistema. Sabedores da fragilidade e dubiedade de certos conceitos e da nossa exposição a riscos, profissionais e pessoais, decorrentes dessas indefinições, nenhum de nós suportava mais a permanente ladainha de que “o licenciamento ambiental é culpado pelo atraso dos projetos de desenvolvimento do país”.
A sugerida necessidade de mudança, no entanto, foi vista com imensa desconfiança pela militância ambientalista e por segmentos da sociedade civil, temerosos de que a revisão dos procedimentos de licenciamento pudesse conduzir a um retrocesso nas conquistas ambientais e sociais. Na transversalidade dessa discussão, os Ministérios Públicos, com seu papel designado de “fiscais da lei”, e seus corpos técnicos auxiliares (verdadeiras estruturas paralelas aos órgãos licenciadores que se multiplicaram pelo país), formatavam suas convicções baseados em leis e regulamentos sublegais ambíguos ou pouco claros, capazes de produzir interpretações divergentes que levariam – e efetivamente levaram – os licenciamentos à indesejada judicialização.
Na ausência de clareza, o pior dos mundos. Sobraram questionamentos em todas as esferas: sobre o fracionamento do licenciamento de projetos complexos; sobre a competência para licenciar; sobre a necessidade (e a legalidade ou não) de complementação de estudos ambientais; sobre a suficiência ou não de informações; sobre a suficiência ou não da consulta pública; sobre prazos de validade e intervalos entre emissão de licenças; sobre necessidade (ou desnecessidade) do cumprimento de etapas do processo, entre outros.
Tais questionamentos levaram inúmeros processos de licenciamento a adiamentos insustentáveis, bem como seus profissionais responsáveis às barras dos tribunais. Tudo isso, sem que tais movimentos aderissem qualquer ganho de qualidade no entendimento de impactos ambientais ou, ainda, melhores garantias de proteção ao meio ambiente ou ao bem estar de eventuais afetados. Um imenso caos jurídico-administrativo tomou conta do licenciamento ambiental, com prejuízo para todas as partes interessadas.
Ainda nos parece – de pronto – que aprimorar o licenciamento ambiental no Brasil é uma necessidade absoluta. É preciso dar contornos bem mais definidos às etapas do processo. É necessário estabelecer claramente direitos, deveres e prazos para cada uma das partes interferentes. Aprimorar definições e marcos conceituais. Melhorar substancialmente o nível de definição de engenharia de projeto dos empreendimentos pretendidos, permitindo assim uma melhoria substancial e maior assertividade dos estudos ambientais prévios. Garantir que os agentes do governo produzam os estudos de sinergia, quando necessários (Avaliação Ambiental Integrada e/ou Estratégica). Modernizar e dar eficácia aos mecanismos de transparência e participação das partes interessadas.
Seria o PL 3729/2004 o texto definitivo para tanto? Provavelmente não. Cabe-nos fazer algumas observações:
O objetivo mais imediato do PL 3729/2004 foi, de certa forma, encampado e resolvido pela Lei Complementar 140/2011, qual seja, a determinação das competências para licenciar. Na mesma tônica do que propõem os artigos 3º e 4º (e seus parágrafos) do PL, a LC 140 assumiu o conceito de que o licenciamento seria, por princípio, uma atribuição dos ESTADOS, detentores dos órgãos seccionais do SISNAMA. Por consequência, os licenciamentos nos níveis Federal e Municipal corresponderiam a exceções devidamente tipificadas – no caso Federal – e circunscritas ao território municipal ou expressamente designadas pelo Estado – para o caso dos órgãos licenciadores dos Municípios. A LC 140 cumpriu bem esse papel de resolver as zonas cinzentas que decorriam da chamada competência comum sobre a proteção ao meio ambiente.
Contudo, alguns aspectos e descrições gerais propostos pelo PL 3279/04 dão enfrentamento a questões importantes, sobre as quais ainda pairam muitas dúvidas e interpretações. Como exemplo, podemos citar a necessária ressignificação (e distinção entre significados) dos termos “efeito”, “impacto” e “degradação” ambiental. O PL confere ao termo “efeito” um significado que já definiu – erroneamente – “poluição” no passado.
É muito positiva e esclarecedora a ideia de gradação que determina, por “efeito sobre o meio ambiente”, “qualquer alteração das propriedades dos componentes físicos, biológicos ou socioeconômicos do meio ambiente, ou de suas interações”, qualificando “impacto” como “a resultante de todos os efeitos” de um dado projeto, e a “degradação” (ou “poluição”) como os efeitos capazes de causar “dano” (tipificado claramente nas alíneas de “a” a “f” do inciso IV do art. 2º desse PL). Essa distinção, se adotada, permitiria uma solução simples das constantes e inconciliáveis discussões sobre o que indenizar ou compensar – o que se restringiria aos casos de degradação ambiental e dano.
É providencial a tentativa – ainda que carente de precisão textual – de determinar a obrigatoriedade de procedimentos completos de licenciamento somente para os assim considerados “empreendimentos potencialmente causadores de significativa degradação do meio ambiente” (art. 6º e 7º). No entanto, peca o PL 3729 pela pouca clareza sobre o que fazer nos demais casos (art. 8º e 9º), bem como pela fragilidade dos critérios que determinam o que representa “significativa degradação” (incisos I a III do art. 6º). Essa omissão contribui para as citadas desconfianças.
Contudo, já houve evoluções nessa matéria, desde a propositura do PL em 2004. Sistemas de classificação de empreendimentos de acordo com porte e potencial poluidor proliferaram nas leis estaduais, cabendo a um Projeto de Lei nacional consolidar tais conceitos. Para diferentes classes de empreendimentos, diferentes processos de licenciamento. Não parece razoável que se apliquem as mesmas exigências de estrutura e profundidade do Estudo Prévio de Impactos Ambientais (EPIA) – e as mesmas etapas e ritos de licenciamento – para, por exemplo, um posto de combustíveis (ou uma pequena metalúrgica de dobra e corte) das que caberiam a um Complexo Petroquímico (ou uma Usina Siderúrgica Integrada). Quanto menor o porte e potencial de impacto, parece justo que o processo admita simplificações. Não há UM SÓ EPIA: por definição há vários formatos, que podem bem servir à avaliação ambiental de diferentes empreendimentos.
Assim sendo, parece extemporâneo que um PL de revisão e modernização do procedimento nacional de licenciamento ambiental se prenda ao sistema original da tríplice licença (LP, LI e LO), ou a uma suposta estrutura e itemização básica do EPIA, como critérios universais para todos os licenciamentos. Uma abordagem moderna exige uma previsão discriminada, na letra da lei, de distintas classes de potencial de poluição e porte, e de quais procedimentos se aplicam especificamente a cada uma de tais classes de empreendimentos. Exige ainda a determinação de diferentes prazos máximos de duração de cada etapa do procedimento de licenciamento, alinhados de forma racional com a classe e complexidade do empreendimento, e necessariamente atrelados aos prazos de elaboração do conjunto de estudos prévios necessários.
Note-se que falamos de CONJUNTO de estudos. É de se esperar que, para projetos de porte e complexidade extremos, o tradicional conjunto de EIA/RIMA e PBA não se mostre suficiente, demandando, em complemento, Estudos de Impacto sobre Vizinhança – EIV, sobre Saúde – EIS, Avaliação Ambiental Estratégica – AAE, ou Integrada – AAI, Análise de Risco – AR, Análises de Ciclo de Vida – ACV, ou outros. E essa regulação também precisa estar clara, para evitar a burocratização de todos aqueles processos que podem – e devem – ser mais simples.
Há que se prever na Lei, ainda, como autorizar os períodos de pré-operação de empreendimentos de grande complexidade. Atualmente, a constatação de que há necessidade de ajustes pós-partida de instalações complexas vem levando, por temor, o agente licenciador a não emitir Licença de Operação, lançando mão de remédios jurídicos tortos e impróprios – como é o caso dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) que, em tese, não teriam poder de substituir o ato autorizativo formal que se consubstancia na Licença. A previsão de uma Licença Temporária atrelada às obrigações de um TAC ou a condições nela previstas poderia resolver este impasse.
Finalmente, no que se refere à participação popular, é notório que o formato Audiência Pública revelou-se um retumbante fracasso. Reclamam os empreendedores e consultores por precisarem “virar essa página”. Reclamam os agentes públicos, pela total ineficácia dessas reuniões como mecanismo de ouvidoria ou coleta de sugestões. Reclama a sociedade organizada, por não se sentir ouvida e representada. Prendem-se alguns agentes do Ministério Público às filigranas meramente formais, tornando-as pretexto para impugnações processuais. Na experiência vivida nos últimos anos, fica patente que as trocas de sucesso decorreram não de Audiências Públicas, mas sim do contato franco e continuado entre empreendor e comunidades vizinhas, do diálogo permanente entre as partes. Se, de todo, o processo administrativo exige a obrigação de formalização da participação e consulta popular, certamente há de haver – na era dos sítios eletrônicos, redes sociais e smartphones – mecanismos de comunicação de resultados, troca de informações e experiências, representação e reivindicação popular muitíssimo mais eficazes do que essas conflituosas e improdutivas reuniões. Apesar de o PL 3729/04 não tratar especificamente desse assunto, trata-se de matéria essencial a ser incluída em qualquer revisão consistente e transparente do processo do licenciamento ambiental no País.
Temos que ter a coragem de mudar. Mudar para melhorar. Dar consistência ao que está indefinido, tirar do limbo jurídico as dubiedades que tanto prejudicam o andamento do próprio procedimento, emperrando desnecessariamente o País. Não se trata de entregar conquistas. Trata-se de torná-las reais, eficientes e eficazes. Da forma como estão, não são conquistas, mas somente elementos de discórdia. O país precisa crescer ampliando sua infraestrutura e o bem estar da população. Para isso, temos que retomar – de forma profissional, democrática e transparente – as discussões para a construção de um Projeto de Lei substitutivo, ao qual se apensem e se subordinem todos os demais que buscaram, por todos esses anos, emendar o licenciamento ambiental brasileiro. Precisamos atacar o todo, com racionalidade, ponderação e sem medo.