No primeiro post após o dia de finados, dou sequência a um assunto iniciado na semana passada: a participação pública no processo de licenciamento ambiental. Quero falar das agonizantes (e agoniantes) Audiências Públicas. Sobre elas, diz o website do Ministério do Meio Ambiente: “O processo de avaliação de impacto ambiental é revestido de caráter público. Nesse sentido, incorpora a participação social, por meio da realização de consultas públicas que balizam o processo decisório sobre a viabilidade ambiental de empreendimentos e atividades potencialmente poluidores. A audiência pública é a forma de consulta pública usual no processo de licenciamento e tem por objetivo a divulgação para a sociedade das informações sobre o projeto e discussão do RIMA, Relatório de Impacto Ambiental, que reflete as conclusões do EIA/Estudo de Impacto Ambiental”. Meu sincero desejo sobre Audiências Públicas: que morram, e descansem em paz!
Explico minha posição. Os dois objetivos das audiências deveriam ser (i) informar às partes interessadas sobre os impactos de um dado projeto e, ao mesmo tempo, (ii) recolher opiniões desse público que ajudem o licenciador a avaliar a viabilidade do projeto, em formato de consulta. Será que esses objetivos vêm sendo alcançados? Pelo que ouço, indistintamente de todas as partes envolvidas, creio que não. Reclamam os empreendedores, os agentes do governo, os promotores do MP, as organizações sociais, as lideranças comunitárias, os consultores encarregados das apresentações. Cada um à sua moda, todos apontam para a ineficiência, o formato impróprio, a absoluta falta de propriedade, objetividade e profundidade das discussões, a ausência de real participação. Comentam, com razão, que a viabilidade ou não do projeto não é decidida na audiência. Nem deve ser. Um velho amigo – servidor público que, por anos a fio, tem conduzido as mais polêmicas audiências públicas a cargo de um certo órgão licenciador – costuma dizer: “audiência pública boa é aquela que começa, e que consegue acabar!”. Na visão dele, esse instrumento (a que dá o apelido de “circo dos horrores”) perdeu sentido e conteúdo. De fato, não ajuda na decisão do órgão licenciador. Não aprimora o projeto ou seus controles. Não se presta à coleta de sugestões. Não representa a opinião coletiva ou o interesse comum. Transformou-se em um ritual de lamentações e barganhas a ser enfrentado, uma página a ser virada, uma formalidade a mais da burocracia.
De fato, as audiências públicas prestam-se mais como palco para detratores e inimigos do empreendimento, cujos interesses nem sempre estão visíveis à linha d’água. Sobre isso, vivi um caso curioso, que mostra que o problema não é recente. Trabalhava nos anos 1990 como consultor para uma grande empresa mineradora, que se debatia para licenciar um projeto mineral na amazônia envolvendo um mineroduto que cruzaria cerca de uma dezena de municípios. Pela legislação estadual, previa-se a possibilidade de tantas audiências quantas fossem solicitadas, em qualquer etapa do licenciamento. Meu cliente já havia passado por duas, onde o mesmo fato inusitado havia ocorrido: no fim da etapa em que a palavra é aberta às manifestações do público, os mesmos dois membros de uma ONG internacional, sempre acompanhados de um promotor do Ministério Público lotado em outro dos municípios a serem cortados pelo mineroduto, interpunham uma petição para que se realizasse nova audiência pública, agora no município em que atuava o promotor que os acompanhava. Só isso. Com base na legislação estadual, o presidente da seção acatara o pedido nas duas oportunidades, marcando nova audiência para dali a 45 dias. Minha missão era apoiar meu cliente nas novas reuniões que porventura viessem. E, ao mesmo tempo, tentar descobrir o que estava por trás da estratégia empregada pela ONG.
Meus melhores esforços não lograram impedir que mais quatro audências públicas ocorressem – totalizando seis. As cinco primeiras terminaram com o mesmo desfecho já descrito. Na sexta audiência, no entanto, um fato nos chamou atenção: não estavam presentes nem os dois assíduos representantes da ONG, nem tampouco um promotor do município seguinte. Transcorrida sem maiores intercorrências, essa audiência chegou ao fim. Concluiu-se assim o processo de licenciamento. Alguns dias depois, obtive a informação que tanto buscava: a “ONG” em questão vinha sendo patrocinada por uma mineradora estrangeira, concorrente do meu cliente, que negociava em sigilo a compra da lavra vizinha. Sua então proprietária, uma empresa brasileira em má fase financeira, havia posto à venda alguns ativos exatamente naquele momento, realinhando seu portfólio ao seu core business. Entre esses ativos, a lavra vizinha, ainda inexplorada. Mesmo em dificuldades, a empresa brasileira resistia às propostas da estrangeira, que por sua feita usava como forte argumento para o preço descontado que propunha… a insegurança jurídica do licenciamento ambiental do país! E o principal exemplo que citava era exatamente o pesadelo que meu cliente vinha vivendo ali ao lado!! No dia da sexta audiência, esse negócio vizinho já estava fechado, a valor bem próximo ao pretendido pelo comprador. Por “coincidência”, a ONG não apareceu dessa vez…
Em pleno século digital da universalização dos smartphones, soa arcáica a idéia de que informação para a população e sua consulta exijam uma reunião presencial reconhecidamente ineficaz e enviesada! Está na hora de mudarmos esse marco legal: a Internet pode e deve ser o endereço dessa reunião de idéias e opiniões. Através dela, todas as contribuições podem convergir, de forma muito mais organizada e fluida, para a tomada de decisão de quem efetivamente tem essa competência: os órgãos licenciadores! Em vez de um endereço físico (escola ou biblioteca, geralmente), onde milhares de páginas de relatórios juntam teias de aranha por semanas, à espera de interessados que nunca aparecem; em vez de uma ou inúmeras audiências inúteis, que se iniciam às 19 horas e avançam pela madrugada, com os poucos e furiosos gatos pingados que ficaram depois do intervalo do lanchinho; em vez disso, que a autoridade ambiental determine que o empreendedor desenvolva website, página no Facebook, Twitter, Linked.In ou que tais, exclusivamente voltados a disponibilizar informações e a colher opiniões e contribuições sobre o projeto que se licencia; que links para esses ambientes sejam disponibilizados nas homepages do empreendedor e do órgão licenciador, acessíveis aos interessados; que o órgão licenciador seja o administrador, e o empreendedor seja o editor de conteúdos dessas páginas, garantindo o pleno controle do órgão ambiental; que o licenciador possa cumprir em paz sua função de licenciar, com apoio (se julgar necessário) de centros de referência e universidades, às expensas do empreendedor; que a legislação permita que os consultores dos estudos ambientais complementem (e até mudem) suas conclusões a partir de dúvidas e contribuições razoáveis que venham a surgir, sem que sejam criminalizados por isso; que a sociedade se organize e busque suporte técnico para criticar de forma positiva (e não raivosa, ideológica ou emocional) os empreendimentos; e que os empreendedores possam, assim, ter previsibilidade sobre o que os espera, para que tenham tranquilidade e interesse em continuar investindo. Isso é crucial para o País.