Como é que se implanta uma Política Corporativa de Sustentabilidade em uma empresa transnacional, que opera em ambientes multiculturais? A resposta parece simples: “eu crio a política estabelecendo as crenças e diretrizes que a Matriz quer ver implantadas nas operações mundo afora, e tomo por base as melhores práticas e as diretrizes maiores sugeridas pela ONU, OIT, Banco Mundial, IFC, instituições de financiamento, etc.”. Simples assim, não é? Na prática, não é tão fácil.
Trabalhava há alguns anos atrás na sede global de um grande conglomerado, com mais de 110 operações espalhadas em mais de 35 países nos cinco continentes. Minha missão era a de desenvolver políticas corporativas que dessem àquela empresa global um alinhamento único, abrangendo todos os assuntos de Sustentabilidade. Além das políticas, era também meta o desenvolvimento de sistemas de gestão, além de um Relatório de Sustentabilidade no modelo recomendado pela GRI (Global Reporting Initiative) verificável externamente, e que pudesse potencializar a reputação positiva do conglomerado em médio prazo. Nos últimos anos, a empresa crescera muito, através de aquisições internacionais. Cada nova empresa que se juntava ao grupo trazia sua cultura peculiar, suas políticas, suas abordagens específicas e suas planilhas de reporte sobre temas tão variados quanto são meio ambiente, saúde e segurança, direitos do trabalhador, direitos humanos, minorias, tolerância religiosa, equidade de gênero, entre outros, cada qual com seus mecanismos e sistemáticas próprias para a divulgação das informações. Cada nova compra somava mais um conjunto de práticas àquela já intrincada Torre de Babel, arriscando o Relatório de Sustentabilidade a se tornar uma peça sem sentido que, provavelmente, compararia bananas a elefantes…
Para o desenvolvimento de princípios norteadores das políticas e para a definição de indicadores de desempenho, nossas pesquisas naturalmente recaiam sobre as cláusulas estampadas no conjunto de documentos dos quais a empresa ou seus financiadores eram signatários: o próprio conjunto de indicadores setoriais da GRI, o Pacto Global da ONU, os Princípios do Equador, as Diretrizes para Empresas Multinacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a norma ISO 26000 e os Princípios Orientadores da ONU para Empresas e Direitos Humanos. Além disso, olhos atentos também para os Indicadores Ethos de Responsabilidade Social Corporativa, o Índice de Sustentabilidade Dow Jones – DJSI (Dow Jones Sustainability Index) e o Índice de Sustentabilidade Empressarial da Bolsa de Mercadorias e Futuro e da Bolsa de Valores do Estado de São Paulo (ISE BM&F/Bovespa). Pela natureza de alguns países onde operávamos, era também necessário atentar para a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes (editada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT em 1989) e a Declaração Universal das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas (de 2007). Todos esses documentos e declarações são produtos da nossa cultura ocidental, capitalista e democrática… Todos os seus princípios refletem o que chamamos de “politicamente correto”. São os ditames que traduzem os nossos modelos mentais e de vida contemporâneos. Só que essa “nossa cultura”, hoje prevalente, não é a única, nem representa necessariamente uma “verdade consagrada”…
Quando o assunto é estabelecer uma política global e uma gestão de indicadores de desempenho para uma grande empresa, é natural que o ponto de partida seja a “NOSSA” cultura. Mas será que, se em vez de ser essa a empresa, a sede de onde emanam as regras fosse, por exemplo, chinesa ou malaia, a política e os indicadores ditados seriam os mesmos? Seguramente que não. Valho-me de alguns exemplos para embasar essa certeza. Um dos princípios repetidos de diferentes formas em várias diretrizes é o da “garantia de liberdade associativa aos empregados”. Em um grande país em que operávamos, a sindicalização era crime; ao pé da letra, se assim o fizesse, a empresa estaria incorrendo em conduta criminosa. Por outra, castigos físicos no trabalho eram prática regular em outros países. Está claro que, para uma grande empresa transnacional listada em Bolsa de Valores, conceber a hipótese de castigo físico a seus trabalhadores seria impensável, mesmo aceita no ordenamento jurídico e na cultura religiosa local. No entanto, muitos chefes e encarregados de operações nesses países reclamavam que, sem castigos físicos, não haveria como impor moral e um mínimo de ordem entre os trabalhadores. Outro dilema: como garantir equidade de gênero em países onde, por lei e tradição, é proibido às mulheres trabalhar ou mesmo se educar? Como desviar-se de um imbróglio político, quando se percebe que a dimensão de sua operação, para um dado país, representaria a maioria de seu PIB, e a perpetuação no poder de quem representa esse país à mesa de negociação?
Tais dilemas não são pequenos. E precisam ser resolvidos, para o bem da lisura das operações e da comparabilidade das informações. O que fizemos primeiro, nesse caso concreto, foi compilar todos os valores, princípios e indicadores cuja materialidade já estava explicitada por acionistas, financiadores e principais stakeholders. Em seguida, buscamos rastrear, junto aos líderes e advogados das operações overseas, os pontos mais sensíveis que poderiam determinar o embate entre os princípios que propúnhamos e o arcabouço legal ou cultural de cada país. Removemos as principais “gafes”, que poderiam gerar constrangimento logo de saída. A partir dessa sistematização, fizemos road shows nas operações com as propostas de políticas e indicadores, no objetivo de checar – no detalhe, ponto a ponto – todas as eventuais contradições legais ou culturais remanescentes. Implantamos o conceito de que o objetivo final, válido para todos, seria o de atender às regras da empresa ou às leis e tradições do país. O que fosse mais restritivo.
Vários pontos conflituosos ainda surgiram. Para alguns deles, foi possível encontrar alguma composição. Ou mesmo assumir que, face à tradição ou à lei local, aquela operação não poderia contribuir para a melhoria de desempenho de um dado indicador nos resultados globais da companhia. Para outros – como no caso de castigos físicos a trabalhadores ou de despejos de resíduos in natura no ambiente – por certo não se haveria de transigir. Nesses casos, apesar de reguladas por lei (ou simplesmente não regulamentadas) nos países em questão, as práticas não seriam toleradas nas operações do conglomerado. O Relatório teve sua primeira edição ainda no meu tempo à bordo. Para pontos de melhoria, formalizamos planos de ação. E ambos continuam a ser editados anualmente, firmes e fortes, até hoje.